quarta-feira, dezembro 22, 2004

O Espelho

Foram noites e noites de loucura.
Tempos inenarráveis de excessos.
De ânsia incontida de viver e de experimentar.
É claro que tudo isto tinha uma razão. Esquecer-te. Definitivamente!
Apagar-te da minha história, reescrever as páginas do meu livro, onde tudo o que fossem palavras tuas fossem eliminadas.
Foi com o coração rasgado que embarquei naquela aventura das noites insanas, em que tudo era possível e alcançável.
Saboreei venenos na esperança que me fizessem esquecer da tua existência,
provei todos os pecados que dissolvessem o teu sabor em mim
e mergulhei na lúxuria, a fim de, com tanto prazer, não me recordasse mais do teu fogo.
Mas...
Nas manhãs extenuadas, quando o brilho do sol me feria os olhos e me ofendia com a sua alegria, levantava-me, olhava-me no espelho, na esperança de me ver melhor.
Nada via de mim, a imagem que o espelho reflectia continuava a seres tu.
O espelho maldito devolvia-me a tua imagem.
Com lágrimas nos olhos revia os teus olhos brincalhões, o teu sorriso quente e os traços definidos do teu rosto. E a tua alma endiabrada pairava por ali, gozando com a minha dor.
Noites loucas se passaram...
Manhãs doridas continuaram...
Sempre que olhava o espelho na esperança de te não ver, ali te mantinhas, desdenhando, enquanto eu me definhava. E quanto mais me revoltava, mais conseguia ouvir as tuas gargalhadas de desprezo!
Uma manhã especialmente difícil não aguentei mais olhar-me no espelho e ver-te.
Atirei-me ao espelho até que não sobrassem mais pedaços partidos, até que tudo o que fossem lembranças tristes estivesse desfeito pelas minhas mãos. Caí no chão de cansaço e de dor, o sangue escorria de mim de modo abundante... Não sei quanto tempo fiquei assim, deambulando entre este mundo e o outro, entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Ao fim de tantas horas, pensei mesmo que tinha morrido pois quando abri os olhos vi-te sentado ao meu lado, eu estava deitada na minha cama limpa, o quarto arrumado, nem vestígios do espelho partido...
Inclinaste-te sobre mim, o teu perfume atordoou-me e despertou-me os sentidos, a tua boca alcançou a minha e uma paz enorme invadiu o meu ser...
Não sei se morri se nasci de novo...