segunda-feira, junho 28, 2004

E agora o meu final...


«As forças faltavam-lhe, caiu desamparada no chão e o barulho da sua queda na calçada gelada ecoou pela rua.

Quando ganhou consciência, não sabia quanto tempo tinha passado nem onde estava. Ainda não conseguira abrir os olhos, mas pouco a pouco foi-se lembrando de tudo... Da força que a impelira para a rua naquela noite gélida, de vaguear em busca de algo... E de como o Destino os decidira reunir. Ali, num canto da rua, a tremer de frio, encontrara-o. O seu amor de sempre, aquele que procurara e que encontrara sempre em séculos e séculos de vidas passadas. Mais velho, mais cansado... e frágil demais para continuar a viver...

Quando abriu os olhos reconheceu o quarto onde estava.
Era um dos tantos quartos do hospital onde trabalhava. A cama aconchegante, o ambiente acolhedor, as paredes brancas... Mas uma dor lancinante a trespassava. Não era uma dor física, era uma dor da alma, daquelas que abrasam o espírito quando não sabemos daqueles a que amamos.

Tocou a campaínha.
Apareceu uma colega sua.
Assim que apareceu não a deixou perguntar nada, apenas sorriu e falou calmamente:

- Sei que queres saber de alguém. Esse alguém entrou contigo neste hospital.

O seus lábios tremeram, abriu a boca para gritar o seu desespero mas a sua colega enfermeira continuou...

- Quando caiste na calçada, o barulho foi tão forte que uma senhora veio ver o que se passava e logo chamou uma ambulância. Vieram deste hospital, e quando chegaram ao pé de ti, estavas semi-consciente e murmuravas coisas sem nexo, mas no meio lá falaste em alguém com o teu casaco mais abaixo.

As lágrimas irromperam-lhe pela face, uma dor aguda cravou-se no seu peito... A colega pegou-lhe na mão...

- Encontraram-no inconsciente e com os sinais vitais muito fracos.
Só havia um sopro de vida naquele corpo. Mesmo assim assistiram-no e trouxeram-no... Aviso-te que está muito, muito fraco e não pode sofrer sobressaltos...

Quando caminhava com a ajuda da sua colega no corredor do hospital em direcção à enfermaria onde ele se encontrava, julgou que o seu coração não ia aguentar... As lágrimas molhavam-lhe a face marcada da dor e da saudade... Ele, mesmo a morrer, estava ali. Ao fim de tanto tempo, ia vê-lo, tocar-lhe, cuidar dele... Não o abandonaria nunca mais, nem que tivesse que morrer com ele.

Chegou à porta entreaberta.
Empurrou-a devagarinho....

Ele estava deitado, o cabelo grisalho comprido espalhado pela almofada alva, os lábios entreabertos como sempre, a face marcada por anos de sofrimento suavizada pela certeza de quem sabe que vai partir. os olhos delicadamente fechados...

Pegou-lhe na mão... Sentir o seu calor, ver aquele ser que amava desde o início dos tempos, ali, frágil, derrotado pela vida e por um amor que nunca cumprira, inclinou-se e beijou-lhe a face enrugada...

Ele abriu os olhos.
A morte vinha buscá-lo mas ela estava ali consigo.
Os olhos verdes tristes, mas belos como sempre...

Olharam-se mais uma vez demoradamente, reconhecendo-se como sempre em cada instante. Agarraram as mãos curtidas pela vida enquanto as lágrimas lavavam o sofrimento de tantos anos, a dor da separação que os consumira.

Contudo o Amor de sempre encheu aquele quarto, aquele era o seu momento de redenção. Tudo o que a Vida lhes tirou, a Morte lhes traria...
Ela beijou-lhe a testa.
Ele suavemente encostou a sua mão aos seus lábios.
Sorriram...
E ternamente se abraçaram...

Muitas horas depois alguém voltou àquele quarto...
Uma estranha paz o invadia.
E uma luz envolvia aqueles dois corpos, apagados de Vida, mas repletos de Amor...»